quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A NOITE ESCURA DA ALMA. O PARADOXO MISTICO.

A Noite Escura da Alma: O Paradoxo Místico
  Análise da experiência mística que antecede à plena iluminação, segundo a   doutrina de São João da Cruz (Séc.16).
 
   Texto de Sergio Carlos Covello

A "noite escura da alma" é metáfora de uma experiência mística que   envolve paradoxo, porque essa experiência é iluminativa e, no entanto,   obscurece a consciência e acarreta sofrimento. Para extrair sentido dessa   contradição, faz-se necessário examinar o rico simbolismo da noite no   imaginário dos povos.
 

Entre os mitos gregos, Noite é o nome de uma deusa, filha do deus Caos, o   vazio primordial antes de serem ordenados os elementos do mundo. Essa deusa   personifica as trevas superiores e é representada com um manto escuro, a   percorrer o céu, enquanto seu irmão, Érebo, simboliza as trevas inferiores. A   deusa Noite gerou várias divindades, algumas benéficas, outras maléficas,   sendo a mais importante delas o Dia (Hêmera), a divindade que trouxe a luz ao   universo. Também na tradição judaica, a noite apresenta ora um aspecto   negativo, ora um aspecto positivo. No Gênesis, ela denomina as trevas, sendo   inferior à luz: "E viu Deus que a luz era boa, e fez separação entre a   luz e as trevas. Chamou Deus à Luz Dia e às trevas, Noite (1.4-5)" .


Em outras passagens, porém, a Bíblia ressalta o aspecto   positivo da noite. Por exemplo, em Jó 35.10, lê-se que "Deus inspira   canções de louvor durante a noite". A noite é, portanto, o momento da   inspiração divina. E em Salmos 19.2, a noite relaciona-se com a sabedoria:   " Uma noite - diz o salmista - revela conhecimento a outra noite".   Não por outra razão a coruja, pássaro notívago, representa, de longa data, a   filosofia, simbolizando o saber e a clarividência. Na arte poética, a noite é   geralmente evocada como o período propício ao romance, pois à noite, cessadas   as atividades laborativas do dia, o ser humano pode ir livremente em busca do   outro. Neste caso, a noite exerce fascínio: "Tudo tem suave encanto quando   a noite vem", diz a canção popular. Na esfera psíquica, a noite   significa a face oculta da consciência, o inconsciente, que, durante o sono,   geralmente à noite, vem à tela mental através de símbolos que expressam não   só os desejos, mas também a sabedoria, a criatividade e as mais belas   intuições.
 
   Na teologia mística, a noite foi aos poucos adquirindo o sentido de estado de   consciência com relação à Divindade, a eterna Incógnita envolta   metaforicamente no manto negro da noite. "Deus habita as trevas" -   dizem os místicos, porque nunca ninguém conseguiu ver Deus, nem Moisés e o   povo eleito. Tudo o que sabemos sobre Deus são conceitos humanos. O homem   presume que existe uma causa inteligente para o universo e chama a essa causa   de Deus, atribuindo-lhe qualidades humanas (como a bondade, a justiça e a   misericórdia). Cria, assim, Deus à sua imagem e semelhança. A teologia   mística, ao contrário da teologia especulativa (baseada em conceitos e   teorias), objetiva um conhecimento experimental - a posse interior de Deus   pela contemplação que implica o despojamento do ego, visando à união da alma   com "aquele que está além de todo ser e de todo saber".

 A esse estado de   despojamento os místicos alemães do século 14 chamaram de "noite   escura", expressão que foi consagrada 200 anos mais tarde pelo frade   carmelita São João da Cruz, num poema lírico de oito estrofes em que o poeta   relata a própria passagem por essa prova que antecede a plena iluminação.
Nos comentários a esse poema, diz São João da Cruz que,   mediante a noite escura, a alma se dispõe e encaminha para a divina união de   amor. É possível explicar a jornada mística como a busca do Eu profundo, a   dimensão expandida da consciência, para além do pequeno ego, de modo que a   consciência individual se transforme em universal ou cósmica. Mas os místicos   cristãos (e mesmo os não-cristãos teístas) consideram a ampliação da   consciência como a união da alma com Deus, por analogia com o casamento   humano, que é uma experiência transformadora na vida dos nubentes.


Nessa etapa do desenvolvimento consciencial só entram as   pessoas espiritualmente adiantadas, isto é, as que já se converteram para a   sua dimensão maior e obtiveram algum grau de luz. Não se trata de período agradável, visto que é de provação. Segundo   São João da Cruz, a noite escura consiste na mortificação dos sentidos e do   espírito, por isso que produz abatimento, esgotamento mental e fadiga. Mas   esse transe é altamente desejável, porque faz surgir o homem novo de   consciência totalmente renovada.
  

A passagem pela noite escura da alma encontra apoio nas escrituras bíblicas.   Tanto no Antigo, como no Novo Testamento, há vários exemplos de pessoas   santificadas que sofrem provação antes de receberem um grande benefício. A   noite escura do Cristo teve início no Getsêmane, pouco antes de o Divino   Mestre ser preso, e terminou na cruz com a sensação de abandono: " Eli,   Eli, lamá sabactâni" (MT 27.46).Graças, porém, à tormenta física e   mental, Jesus de Nazaré ressurgiu como o Cristo Cósmico Eterno, dando ensejo   a uma das mais influentes tradições religiosas do mundo.
 
 Na expressão Noite Escura, que dá nome à poesia de São João da Cruz, estão   implícitos os vários sentidos figurados da noite: o mitológico (geratriz da   luz), o sapiencial ( momento da sabedoria e da inspiração divina), o poético   (instante doce do amor) e o psicológico (centro de consciência   transcendente).
 
 A análise, ainda que sumária, dos belos versos do poema permitirá a melhor   compreensão dessa fase do desenvolvimento da consciência, na visão poética do   monge que fez da busca do Absoluto seu ideal de vida:
 
  NOITE ESCURA
 
  Canções de S. João da Cruz (1542-1591) que descrevem o modo pelo qual o   místico chega ao estado de perfeição espiritual.
 
  (1578)

1. Em uma noite escura,
  De amor em vivas ânsias inflamada, (1)
  Oh, ditosa ventura!
  Saí sem ser notada, (2)
  Já minha casa estando sossegada. (3)
 
  2. Na escuridão, segura,
  Pela secreta escada, disfarçada, (4)
  Oh, ditosa ventura!
  Na escuridão, velada,
  Já minha casa estando sossegada.
 
  3, Em noite tão ditosa,
  E num segredo em que ninguém me via,
  Nem eu olhava coisa,
  Sem outra luz nem guia (5)
  Além da que no coração me ardia.
 
  4. Essa luz me guiava,
  Com mais clareza que a do meio-dia,
  Aonde me esperava
  Quem eu bem conhecia, (6)
  Em sítio onde ninguém aparecia. (7)
 
  5. Oh, noite que me guiaste!
  Oh, noite mais amável que a alvorada!
  Oh, noite que juntaste
  Amado com amada,
  Amada já no Amado transformada! (8)
 
  6. Em meu peito florido
  Que, inteiro para ele só guardava,
  Quedou-se adormecido,
  E eu, terna, o regalava,
  E dos cedros o leque o refrescava.
 
  7. Da ameia a brisa amena, (9)
  Quando eu os seus cabelos afagava,
  Com sua mão serena
  Em meu colo soprava,
  E meus sentidos todos transportava.
 
  8. Esquecida, quedei-me,
  O rosto reclinado sobre o Amado; (10)
  Tudo cessou. Deixei-me,
  Largando meu cuidado
  Por entre as açucenas olvidado.(11)
 
 
  (1) Trata-se de alma adiantada na espiritualidade, pois está incendiada do   amor a Deus.
 
  (2) Isto é, saiu de si, sem ser impedida pelos sentidos inferiores que   compõem o ego.
 
  (3) Casa sossegada: vida interior com pleno domínio das pulsões inferiores e   das paixões menores.
 
  (4) A escada mística da ascese rumo à Divindade. A escada joanina desdobra-se   em 10 degraus.
 
  (5) A luz da fé e do amor.
 
  (6) Em sendo evoluída, a alma já conhecia a Divindade.
 
  (7) O centro da alma, o espírito que é também sua parte mais alta.
 
  (8) Pela união com a Luz a alma se transforma na Luz.
 
  (9) Ameia: cada um dos arremates salientes, separados por intervalos   regulares, construídos na parte mais alta do castelos, das torres e das   muralhas que protegiam as cidades antigas. Vê-se que a alma subiu a escada   para encontrar a Divindade.Brisa amena é sopro, símbolo do influxo espiritual   de origem celeste. Mensageiro divino, o vento afasta as trevas. Na tradição   bíblica, o "sopro de Deus" animou o primeiro homem. No poema, o   sopro de Deus faz surgir o ser iluminado ( o novo homem que retornou à origem   divina).
 
  (10) Esquecida de si, quer dizer, com a atenção concentrada só no Amado.
 
  (11) Sua inquietação desapareceu.

 

 

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