sexta-feira, 1 de maio de 2009

O segredo dos xamãs


O que leva tantos habitantes de metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo a celebrar um ritual ancestral que privilegia o contato com a natureza - por Ruth de Aquino

Uma fogueira sagrada está ardendo neste exato instante em algum lugar no Rio de Janeiro ou em São Paulo, de preferência num bosque com rio, lago ou cachoeira. Em volta do fogo, ou de uma roda de cura, brancos e índios de tradições e culturas distintas, cherokee, cheyenne, caxinauá, tupi-guarani, asteca, tocam tambores e chocalhos, entoam cânticos para o wakan tankan ("o grande espírito" na língua lakota) e para a mãe terra. Fazem oferendas com tabaco e saúdam as quatro direções, norte, sul, leste e oeste. Rezam pelas árvores ("o povo em pé"), pelos animais ("companheiros e guias") e por todos os seres. A fogueira e os cânticos também precedem o ritual maior de purificação: a tenda do suor. Chamada pelos índios americanos de sweat lodge, e pelos andinos de temaskal, a tenda representa o útero da mãe terra. Ao entrar nessa espécie de sauna primitiva com pedras incandescentes, impregnadas do cheiro de plantas como sálvia, cedro e capim-limão, é preciso dizer: "Por todas as nossas relações". Ali, explicam os iniciados, assume-se um compromisso. Você não precisa ser xamã ou pajé para saber que, ao submergir na escuridão da tenda, está atendendo a dois "chamados": buscar o autoconhecimento e contribuir para a felicidade de seus próximos e do planeta. Se você não estiver sendo sincero nem tiver fé, é perda de tempo. Estará enganando a si mesmo. E suando à toa.



O que tem levado grupos de católicos, espíritas, judeus agnósticos, de todas as idades e níveis de instrução, a dar um tempo em sua vida e mergulhar em práticas que nada têm a ver com o cotidiano urbano? Suar por duas horas, sentado na terra batida, ouvindo o bater dos tambores. Um programa de índio. Cantar palavras em idioma lakota cujo significado ignoram. Revelar coisas íntimas que podem não ter contado ao melhor amigo. E, às vezes, associar a tenda do suor à cerimônia da ayahuasca, o chá de plantas da Amazônia (rainha e cipó) que leva a uma expansão da consciência por muitas horas. O uso da ayahuasca é legal, mas o peyote (cacto cuja substância alucinógena é a mescalina) ainda é proibido no Brasil, embora seja o chá da cerimônia nativa americana.

Quem chega pela primeira vez a esses encontros, às vezes levando filhos, ou levando mães, depara com uma espécie de "família" bem peculiar. O elo é estabelecido mais pela natureza e pela música que por qualquer teoria. Um fim de semana na Aldeia do Sol, por exemplo, perto de Paracambi e Vassouras, saindo da Rodovia Presidente Dutra, oferece um encadeamento de cerimônias, da lua, do sol e das curas. Os anfitriões se chamam Bull e Bill. s Aos poucos, na casa decorada por gravuras e desenhos de índios, os xamânicos de primeira viagem conhecem os "objetos de poder" - tambores, chocalhos, sacolas de medicina com tabaco e ervas, queimadores, bastões da fala, apanhadores de sonhos, escudos de proteção, penas de aves. A pena da águia equivale ao crucifixo no cristianismo.


Para quem está de fora e é um ser totalmente racional, ver o grupo de xamânicos no auge, em cantos, orações ou transe, leva a uma conclusão automática: são todos loucos, herdeiros da new age, neo-hippies. Para Rogério Favilla, de 43 anos, aplicado estudioso e praticante do xamanismo, "as pessoas se sentem como se estivessem numa tribo, a cerimônia é uma ponte para que sejam elas mesmas, se você quer ser urso, pode ser urso, é uma chance de loucura sadia e generalizada, que proporciona intimidade com a natureza, a divindade da mãe terra, e o grande espírito". Os adeptos do xamanismo reconhecem estar ali em busca de outra dimensão, de um encontro com vidas espirituais passadas, com seus ancestrais e com o futuro do planeta. Loucura doentia, para eles, é outra coisa: não observar os sinais, conectar-se apenas com o corre-corre e o narcisismo, alimentar-se do ego, e viver para consumir e ter sucesso. Rogério admite que "muitos curiosos buscam equivocadamente o xamanismo como moda exótica; vêm para tomar chás de plantas psicoativas, ou perguntam como se faz para ter um animal de poder... nada é tão simples". Mas, como sempre, há os que aparecem atendendo a "chamados internos".

"O xamanismo, para mim, é o começo de tudo. Qualquer religião chega lá, na natureza, nos animais. O homem foi progredindo e se afastou de suas origens. Os xamãs resgatam a essência", diz Marilda Lacerda, uma bisavó de 68 anos, que freqüenta tendas há cinco. Marilda é kardecista, faz ioga, tai chi e pilates. É professora de Música. Vai a retiros budistas. Mas sua praia é o xamanismo. "Ali, na tenda, a gente desliga e se concentra ao mesmo tempo." Há quem se beneficie dos rituais como terapia. É o caso do professor de Filosofia Sérgio Schweder, de 51 anos, catarinense que vive no Espírito Santo: "Na tenda, várias questões existenciais minhas vieram à tona. Queria aprender a ser mais tolerante e menos rígido com meus filhos e com as pessoas".

Um dos líderes de tenda no Rio é Toni Paixão, pernambucano de Caruaru. Sempre se interessou por ufologia, egiptologia, lia hieróglifos. Nos anos 90, participou do projeto Arco-Íris, que trouxe para o Brasil terapias alternativas como os florais de Bach. Em 1995, estava presente na primeira tenda, organizada por Carlos Sauer, um dos líderes xamânicos mais famosos, que viveu nos Estados Unidos por 25 anos. A cerimônia histórica foi realizada no sul de Minas Gerais em Aiuruoca (pedra do papagaio) e liderada pelo argentino Hector Gomes.

Toni explica que xamã "é uma palavra originária da Sibéria,

do dialeto Tung". É o "homem do caminho", que faz a ligação entre o mundo físico e o espiritual. Tem gente que acha que o xamanismo é a religião dos índios. Na verdade, diz Toni, é um modo de vida. "Essas práticas vêm antes da palavra religião. Religare. Algo que foi perdido. Quando os espanhóis chegaram à América, viram um povo tão harmonioso que chamaram de índios (in dios = em deus). O xamã tem um papel social. Está presente quando a criança nasce, no batismo, em nosso último rito de passagem, que é a morte, ele é o filósofo, o curandeiro, o adivinho." Hoje, Toni lidera tendas não só no Brasil, mas na Alemanha, em Israel, onde for convocado. Também fabrica tambores personalizados e dá cursos.

Uma de suas alunas é Roberta Ferrari, de 39 anos, psicomotricista, que viu sua vida mudar numa viagem turística à Amazônia. "Tive um contato forte com a natureza, me relacionando com as árvores, fiquei meio assustada, eu estava com meu marido e nosso guia. E ele disse: 'Vai ver você é xamã porque os pajés falam com as flores'." Na volta ao Rio de Janeiro, procurou informações na internet. "Faço tenda há um ano, uma vez por mês. A tenda me equilibra, me bota nos eixos. Pelo suor, saem até as cicatrizes espirituais. A volta à casa é gostosa, depois da flutuação; ao encontrar filhos e marido, levo a energia da natureza."

A porta da tenda, na tradição cheyenne, é dirigida ao leste
(o sol, o fogo) e seu animal correspondente é a águia, cujo símbolo é a conexão espiritual, porque voa alto e tem foco, direcionamento. O sul é o lobo, o coiote, relacionado com família, com a parte emocional, com a criança dentro de todos nós. "Você se acha o máximo? De repente, o coiote te dá uma rasteira e te ensina a ser humilde", diz Toni. O oeste é a cura física, seu animal é o urso, e significa a introspecção, o momento da meditação, da caverna. "O ensinamento dele é assimilar o que é bom, para tua cabeça digerir." O norte é o velho, o búfalo branco, que simboliza o ancião, a ancestralidade, a janela do conhecimento, são os nossos antepassados. "O búfalo nos ensina a caminhar com firmeza na terra; apesar de ser grande e forte, usar isso com sabedoria."

A tenda do suor não tem tamanho padrão. Normalmente é feita com 16 varas, de preferência de salgueiro, para ensinar a ser flexível. Quatro ervas - o tabaco, sem química, prensado com mel, o cedro, o capim doce e a sálvia - são jogadas nas pedras e colocadas num buraco no meio da tenda. Levadas à tenda pelo "homem do fogo", as pedras são apanhadas com um utensílio de chifres de veado (símbolo de amor e pureza). A saudação mais comum em lakota é "ahoo" (arrô) e quer dizer obrigado, assim seja. Historicamente, a tenda do suor começou como "tenda da lua", e não era mista, era praticada apenas por mulheres menstruadas.

A bela Adriana Ozeloziwatl (mulher jaguar em asteca), brasileira, de 36 anos, lidera uma tenda só para mulheres em Itaipava, na serra fluminense. Casada com um xamã mexicano, Tezka, tem uma filha de 1 ano e 2 meses que se chama Ketzal Meztli (lua formosa). Os nomes são dados com base no calendário asteca.


Em 2004, Adriana foi ao México para a cerimônia dos 8 mil tambores. "Foi lá que conheci o Tezka, que é um mestre, um dançante do sol. Ali começou meu treinamento." No dia 15 de novembro, Tezka e Adriana organizarão em Itaipava o primeiro congresso no Brasil de "busca de visão". "As pessoas sobem a montanha, fazem ritual de abstinência, sem comer nem beber durante quatro dias, e nós do apoio vamos estar fazendo cerimônias, cantos e preces, mantendo fogo aceso, para ajudar os buscadores, em seus estados alterados de consciência."


Um dos sucessos do neoxamanismo - que mistura tradições de várias etnias, e coloca a classe média em contato com os índios - são seus ensinamentos práticos do dia-a-dia. Um de seus símbolos é a árvore da vida. A raiz, o caule e a copa. Isso quer dizer que sua espiritualidade só é forte quando a raiz está bem plantada. Com os pés no chão, é possível voar alto. Aos poucos, o xamanismo começa a estar presente em cerimônias de brancos como casamento e batismo. Lino Py, de 35 anos, carioca, fisioterapeuta e professor de tai chi, abençoado como filho pelo ancião cheyenne Nelson Turtle em 1997, celebrou na semana passada um batizado xamânico. "Quando se batiza a criança nesse caminho, os pezinhos ficam marcados no altar. Essas pegadas a protegem, não deixam que ela se perca de seu eixo, de seu próprio destino. Hoje, sabemos que a saúde só existe quando há equilíbrio entre a mente, o corpo, o espírito e as emoções."


Fonte :http://revistaepoca.globo.com/

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